quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

SONETOS À MAYRA


Perfil "leonardesco" de Alma Welt- litografia de 2001, de Guilherme de Faria.

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Sonetos à Mayra, de Alma Welt


(Drama Lírico em 42 Cenas e Três Atos)


Apresentação


Eis aqui uma obra inusitada e instigante: uma seqüência de sonetos que compõem um "drama lírico", como a autora o classificou adequadamente, a meu ver, embora essa denominação fosse mais comumente atribuída às grandes óperas, cantadas por cantores líricos, com as formidáveis vozes de sopranos, contraltos, tenores, barítonos, baixos, etc.
Mas a nossa Poetisa, como sempre com o seu toque de originalidade malgrado sua veia clássica ou mais apropriadamente romântica, conta aqui, e nisso consiste a novidade, um drama amoroso de sua própria vivência e publicado em tempo praticamente real à medida que o ia vivendo, no conhecido site literário Recanto das Letras, na Internet. Leitores entusiasmados do Brasil todo, e mesmo alguns do exterior, de língua portuguesa, acompanharam encantados e/ou estarrecidos o desenrolar desse drama vivido como sempre com espantosa intensidade lírica por nossa poetisa.

Mas por quê "estarrecidos"? Porquê, caros leitores que ainda não conhecem outras obras de Alma Welt, trata-se de uma paixão vivida por nossa heroína-autora por uma sua aluna de pintura e História da Arte, uma adolescente aqui chamada Mayra, que não sabemos ao certo ser ou não um pseudônimo (o que é mais provável) para preservar a identidade de uma menor de idade. O mundo certamente ficaria escandalizado ao acompanhar o processo de sedução e desenvolvimento de um tórrido caso amoroso entre uma artista de 34 anos e uma "guria" ou "ninfeta" (como Alma diz) de 17 anos, sua aluna, com explícitas cenas de cama, inclusive de um assombroso "mènage-a-trois" com o irmão da Alma, e induzido por ela. Mas acontece que a beleza ou a verdadeira arte tudo desculpam e tudo justificam, e o resultado artístico, e se posso dizer assim, pureza de alma com que foi vivido esse "afair", são tão evidentes que certamente comoverão gregos e troianos. Digo mais, há uma verdadeira elevação na abordagem lírico-erótica desses versos, como aliás já estamos habituados em relação à obra desta gaúcha que se revelou um verdadeiro fenômeno das letras femininas do nosso país.
Alma Welt se entrega de corpo e alma às suas paixões como verdadeira Anima Mundi (que seu nome indica). Vêmo-la atirar-se, seduzir, exaltar-se, temer, deprimir-se, sofrer os tormentos da dúvida, recomeçar, aguardar, formar expectativas, ingênuas esperanças, idealizar, entregar-se ao desvairio erótico, e finalmente transcender a sua paixão para o plano mítico triunfal, ao final dessa magnífica pequena saga amorosa.
Eis aí um exemplo do que podem os poetas fazer com seus aparentemente corriqueiros casos amorosos cotidianos.
Só nos resta aplaudir, curvar-nos diante do dom sagrado da Arte, que é, afinal, de todos nós, de nossa humanidade agraciada.

São Paulo, 1° de Setembro de 2006

GUILHERME DE FARIA


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PRIMEIRO ATO


CENA I

Prólogo


Soneto do Amor redescoberto


Amando o amor em ti, Mayra minha
Renasci de mim, que me esvaía.
Estava eu perdida e até mesquinha
Diante dos sonhos que antes concebia.

Eis que em mim se ergue como outrora
Um amor juvenil que me comove,
Teu rosto de ninfeta (ó Nabokov!)
Dissipando outros rostos, como aurora.

Que não saibam tua mãe e o teu amigo
Que amada és pela pintora e poetisa
Pois o mundo não mudou e é antigo.

E se voltares para mim como ainda sonho,
Vem de surpresa, eu te peço, não me avisa!
Pois de esperar é que na angústia então me ponho.

10/08/2006




CENA II

Soneto da Torre


Amada minha, ninfa que adolesces,
Renovando-me o amor no coração,
Ages como se jogar soubesses
E deixas-me em suspense e solidão.

Que fazer se só me resta esperar-te
Pois já me tens o coração cativo?
(ai, que amor antigo que assim vivo!)
Donzela numa torre ou baluarte

Esperando não um forte cavaleiro
Mas outra donzela num cavalo
Que virá num canto alvissareiro

Jogar a sua trança sobre o valo
Numa doce inversão de Rapunzel,
E os olhos, não cabelos, cor de mel....



CENA III


Soneto da saudade digital

Distante muito embora não da mente
Já não posso captar o teu crescer.
Deixas-me amar-te, eu sei, digitalmente,
Apenas por e.mail, quero dizer.

Mas, ah! não realmente digitar-te,
Isto é, em poses nuas colocar-te!
Tocar o teu corpinho de modelo
A quem dediquei tanto desvelo!

Sim, eu sei, desvelo... em desvelar-te.
Mas olha que foi tudo pela arte,
Não me faças sentir-me Malazarte!

Pois se pintora sou, exímia e até poeta,
Quem com mais direito desnudar-te,
Quem com tanto amor, quem mais esteta?




CENA IV

Soneto da Paixão digital

Ergui-me esta manhã a rir, cantar,
E a euforia tomou meu coração
Ainda antes de um vero despertar,
Sonânbula que estou desta paixão!

Ah, que alegria! Ah! Que dom
Tu tens, guria, de animar
Com tua palavra ainda sem som,
Na telinha, um simples digitar!

“Sim,” disseste, “ainda te amo”.
Ai, quero morrer e até gritar
De alegria e alivio, e me derramo

Em lágrimas de amor, a desfrutar,
Querida, um novo toque do teu dedo,
Mas no coração, em meu degredo!





CENA V

Soneto da Teia


Amor meu, ó ninfa em plenitude
Que veio como aluna dedicada
E que temendo ser, talvez, tão adorada,
Reter comigo, de repente, não mais pude.

Como esquecer o teu rosto, o teu sorriso,
O olhar atento, deslumbrado, da emoção
Com que ouvias meus discursos de improviso
Encantada com as palavras: meu condão?

E que candura imensa demonstravas,
Tu, uma guria tão sagaz
Que à própria mestra superavas

Na arte de encantar e seduzir
Sem esforço, em meio à teia pertinaz
Que o corações tratavam já de urdir!



Cena VI

Soneto Pampiano de esperança


Estou no sul, no meu pampa, não mais só
Mas trazendo um amor vivo na memória.
Abro as janelas, tiro os panos, bato o pó,
Preparo o casarão pra nova estória.

Aqui pretendo receber minha ninfeta
E sonho apresentá-la à peonada.
Pra isso dou um giro na ampulheta,
Pra receber o meu amor não poupo nada:

Me jogo na faxina, tiro cisco,
Não chamarei o Rôdo, tenho ciúmes
De um como de outra, não me arrisco.

Quero tudo pr'uma festa... casamento!
Vou casar-me em meio aos vagalumes!
Buscarei juiz de paz em Livramento.



Cena VII


Soneto de expectativa


Arrumado o casarão, eis-me à espera
Do amor e da esperança que já tenho
Mas que vai transformar esta tapera
No palácio dos sonhos que mantenho.

Estou exagerando, é claro, é tudo lindo
Nesta estância, faltando só Mayra
Com a beleza do seu amor infindo
E seu riso que é como um som de lira.

Só preciso disfarçar a euforia
Pois meus sobrinhos para aqui também virão
Pra curtir e conhecer a minha aluna

Que lhes parecerá quase uma “cria”
Como eles, que por certo a adorarão,
E farão tudo para que a nós se una.



Cena VIII


Soneto do aviso de chegada

É hora de buscar-te, alguém me informa,
Mayra, minha amada, na estação.
Espera, não chegues, antes não,
De eu estar ali na plataforma!

O caminho, com Galdério na charrete,
É um desfile no meu reino ou ducado.
Tu verás, amor meu, não pago frete
E o peão é um valete dedicado.

Estarei te recebendo, minha princesa,
Com meu pequeno séquito adorado,
Em torno, como um halo de beleza:

As crianças, Mayra, como guisos,
O olhar brilhante, arregalado,
A ofertar-te suas flores e seus risos!




Cena IX


Soneto da estação


Enfim nos braços teus, minha guria
Rodando como em doce carrocel!
Em torno os olhares e a alegria
Dos piás, como anjinhos do meu céu.

Fumaça, silvos, guinchos e vapores,
E na plataforma a confusão;
Em volta de ti somente amores,
Nos olhares aparente aprovação.

Galdério, Patrícia e meus sobrinhos
Se aprestam em pegar tua bagagem,
Estás inebriada de carinhos.

Então, beijando-te na boca demorado,
Eis que agora faço uma bobagem,
Ali no súbito silêncio consternado...




Cena X


Soneto do retorno


Estás nos braços meus, ó minha amada,
Quero cantar, gritar de alegria!
Não mais minha aluna és namorada,
Que é como na verdade sempre via.

De mãos dadas no percurso de retorno,
As crianças atrás, tão buliçosas
Não julgam, tudo aceitam, e como estorno
Beijinhos, beijinhos, carinhosas.

Então te pus no colo, meu encanto,
Já que estavas um tanto espremida
Entre mim e o charreteiro, ó minha vida!

E assim abraçadinhas, a tremer
Eu me pus a cantar o acalanto
Que te fez lentamente adormecer...





Cena XI


Intermezzo ou Conto de Fadas


Era uma vez aluna e professora
Que em amar, além das letras se enredaram
E encetaram uma troca promissora
De e.mails... enfim, se apaixonaram.

Ah! que tormentos viveu a pobre mestra
Entre dúvidas, dilemas e incerteza,
Enquanto a doce aluna, com mão destra,
Conduzia como um rio a correnteza

De seu cândido amor, em sua pureza
(tão moderna e sem recalques a guria...)
Ah! se tivesse a mestra essa firmeza

Não teria sofrido inutilmente
Por receios e escrúpulos (quem diria!),
Refletidas num remanso, simplesmente.


Cortina (Fim do Primeiro Ato)


SEGUNDO ATO


Prólogo


Amor é um turbilhão (de Alma Welt)

Amor é um turbilhão, um mar de chamas
Que queima como incêndio na floresta,
É ferida aberta sobre as camas
E dói tanto que pouco ou nada resta

Só a ânsia de mais e mais amar
E mesmo virada assim do avesso
É redondamente se enganar
Quanto ao seu fim ou seu começo;

É ficar cega de tanto admirar
E querer o outro devorar
Para senti-lo dentro devorando.

Eis o nosso coração então repleto,
Que vai o Hermafrodita aflorando,
O ser primordial, uno, completo!

De flores e abelhas

Em volta ao casarão, um mar de flores
E as crianças como abelhas a voar,
Mas brincando, expressando seus amores
Ao olhar que já começa a marejar.

Entre elas minha paixão está também
(Mayra, não me canso de mirá-la),
Sentindo-me feliz como ninguém,
Esta noite vou, por certo, devorá-la.

Sei que desejos precisam ser contidos
Para não chocar os pobrezinhos,
Pra não "dar bandeira" entre os queridos...

Então, Mayra, espera-me à noite,
Deslizarei: nossos quartos são vizinhos,
Pra que entre flores e abelhas não me afoite.




Cena XIV

Soneto da primeira noite


Noite sobre o pampa, como manto
De sonhos acordados, de delírios,
Da nudez das horas e do espanto
Do coração e seus secretos rios.

Ausculto o arfar do casarão,
Tensa, atenta, tesa no meu leito,
A mão direita segurando o peito,
Entre as pernas jaz a outra mão.

Silenciosa, nua, pés descalços,
Como sombra me dirijo ao corredor,
Encontro a tua porta sem percalços

E te vejo, ah! Mayra, pela fresta,
Tão nua quanto eu, sem mais pudor,
Braços abertos para a tua mestra!





Cena XV


Primeira noite de prazer


Apaguemos as luzes! Basta a lua
Com seu clarão que banha a tua cama,
Sob a porta a luz se infiltra e se derrama
E espero ainda muito te ver nua...

Beijo a tua boca e logo o seio,
Minhas mãos tateantes e febris,
Desço ao teu umbigo bem no meio
Do caminho para a fenda dos rubis!

E logo mergulho em tua boquinha
De baixo, lábios róseos que entreabro
Ensinando nova língua à minha aluninha.

Tens as pernas, ah! e os tornozelos
No ar, expondo o lindo púbis glabro,
Produzindo em tua mestra novos zelos!



Cena XVI


Segundo soneto da primeira noite


A galope, coração, em meu abraço,
És frágil e ao mesmo tempo destra,
És minha vitela presa a laço,
Sou tua peona, não a mestra!

Vou devora-te, Mayra, a lambidas,
Tuas orelhas, tuas aréolas, tua bundinha,
Sinto o perfume das partes escolhidas,
Teus lábios, axilas, tua conchinha.

Ah! Sinto-me girar, desfalecer...
Ah! Isto é belo, sublime, alucinante!
Não esperava tão cedo tal prazer:

Virando-te, no bom "sessenta e nove"
Que se instala instável num instante,
Estás tão solta e... isso... me comove!




Cena XVII


Soneto do despertar


Acorda, meu amor, é dia, acorda!
A noite chegou na sua foz.
As crianças já vêm como uma horda,
Logo estarão pulando sobre nós.

Ah! Lembrar a noite, nosso sonho,
Nossa loucura de amor, de gozo e arte!
Meus lábios doem, mas proponho
Mais um beijo antes de deixar-te.

Ah! Aí estão nossos anjinhos:
Pedrinho, Pati, Christian, Hans,
Como grilos, pequeninas doces rãs,

Cobrindo-nos de mais e mais carinhos
Beijando-te, Mayra, com candor
Avalizando, eu sinto, o nosso amor!




Cena XVIII


Soneto da manhã gloriosa


Manhã deste meu pampa, gloriosa!
Esplendor de claridade, sons e cores!
Cercada aqui estou dos meus amores,
Não poderia a vida ser mais generosa.

Mayra, que banhei como guria,
Senta-se ao meu lado e pede o mel;
Matilde, anfitriã de mesa e pia,
Galdério entrando tira seu chapéu

Oferecendo a charrete p'rum passeio,
Enquanto o meu amor com estes dois dedos
Retira uma migalha do meu seio.

E penso que de tanto a vida amar
Um dia (até faz parte dos meus medos)
Vou explodir e de mim mesma me vazar!



Cena XIX

Soneto da minha macieira


Borboletas e abelhas vêm olhar
Nosso alegre desfile no jardim,
Rumamos em seguida pro pomar,
Mayra ri e dá gritinhos para mim.

Pedrinho quer mostrar meu coração
Gravado a canivete em minha ARA*
Além de Alma, Aline e Andrea ali estão,
Mas por sorte a guria nem repara

Pois de pronto ponho-me a gravar
Um M e um Y no AR
Da sigla e não só pra disfarçar

Pois o jovem coração da macieira
Conhecida desde aqui até a fronteira
Continua convidando-me a amar.




Cena XX

Soneto do ciúme antecipado


Eis que vem o Rôdo, eu já sabia!
Fareja meu maninho carne nova.
Ah! Estou brincando, não devia
Falar assim do belo Casanova.

O guri é guapo em demasia
E temo que Mayra não resista.
Eu mesma na infância sucumbia...
Que digo! Até hoje, se ele insista.

Mas devo preservar o meu amor
Que afinal é apenas ninfetinha.
Não! É uma princesa, e toda minha!

Na verdade estou confusa, que horror!
Esta noite vou mostrar o que é amar
À minha aluna, e à princesa... encantar.



Cena XXI

Soneto das princesas encantadas


Era uma vez uma jovem professora
A quem um rei contratou pra lecionar
À sua filha, pintura, e como autora
Ensiná-la a escrever, não a amar.

Mas, ai! essa mestra era a Alma,
Não sabia o pobre pai de sua fama
Ou perderia o rei a sua calma
E não poria a princesa nessa cama.

Como provar a todos sua pureza
Era o dilema com que a mestra se havia
Já que a sede de amar quase a perdia.

O coração falou então com mais clareza,
E atirando livro e pena para os cantos
Sucumbiram mutuamente aos seus encantos!



Cena XXII


Soneto do selo descoberto


Noite das amantes, novamente,
De sombra, de gemido, de sussurro...
A prole toda dorme, inocente,
Enquanto nuas tateamo-nos no escuro.

Não sabemos, todavia, como entrar
No outro ser, em nós, vagina a dentro:
Línguas, dedos, procuram penetrar,
Sinto teu doce mel, ai! ali dentro,

E comovo-me, perturbo-me por ver
Que virgem és ainda, minha princesa,
E que não cabe a mim essa afoiteza

De mais fundo penetrar essa riqueza.
Ai de mim! Devo zelar para manter
O selo que é vedado a mim romper...




Cena XXIII


Soneto da chegada de Rôdo


Aqui estás, Rôdo, benvindo!
Meu irmão, que doce é abraçar-te,
Sentir teu corpo jovem, forte, lindo
(e ainda mais: querendo alçar-te...)*

Irmão, me contarás tuas andanças
Mas antes precisamos conversar,
Aquela é Mayra, entre as crianças,
Vou chamá-la para te apresentar.

Mayra, este é Rôdo, o irmão amado.
Ah! Baixaste os olhos, minha donzela!
Ela é tímida, Rô, olha pra ela!

Não é o mais perfeito achado
Que eu poderia fazer na Paulicéia?
Olha esses olhos de Nausica, da Odisséia! *



Cena XXIV


Soneto da voyeuse dolorida


Turbilhão de sentimentos, incertezas...
Enxergo, imaginando, antecipadas
As carícias dos dois em suas proezas
Complementares, que a mim estão vedadas.

Mayra e Rôdo! Ah! Alma alcoviteira!
Logo tu, que és ciumenta e até carente!
E sou! Mas, ai de mim, sou a herdeira
Das taras desta terra decadente.

Agora vejo, pela fresta, escondida,
A dupla, e meu tesouro já perdido,
Minha doce ninfeta possuída!

Ai! Sou louca, eu sei, talvez não presto,
Mas meu coração é dividido:
Entre macho e fêmea, onde resto?



FIM DO SEGUNDO ATO



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TERCEIRO ATO


Cena XXV


Soneto do amanhecer



Ao amanhecer, mal despertada
Vieste pro meu leito sorrateira
Encostando teu corpo à minha traseira,
E eu fingia dormir, emocionada.

Abraçaste-te a mim, que até tremia
E logo virei-me pra abraçar-te,
Minha mão sabendo bem aonde ia
Fez questão de, ali, tão íntima, tocar-te.

Estavas ensopada, na verdade,
Eras mulher, choravas de saudade
Agarrada como alguém que se desterra.

Senti teu sangue, olhei-o comovida,
E num impulso, como vaca à sua bezerra
Pus-me a lamber-te inteira, ó minha vida!




Cena XXVI


Soneto da manhã



Manhã cheia de alaridos, luminosa,
De galos, cães e alegres passarinhos!
Estás estremunhada, preguiçosa
E quero despertar-te com carinhos.

Vieste para mim após “perder-te”.
Não ficaste nos braços do invasor.
Se ali permanecesses, meu amor,
Nem por isso deixaria de querer-te.

Vou confessar-te, amor, foi planejado:
Entreguei-te ao meu irmão amado,
Sou titereira, talvez, e tentadora.

Não achei justo, por seres “complacente”,
Manteres tua caixinha renitente
Sem conheceres logo a chave de Pandora....




Cena XXVII


Soneto do café da manhã


À mesa estamos todos, reunidos
No café da manhã com as crianças;
Rôdo, tu e eu, enfim unidos
Fazendo renascer as esperanças

Que tenho de manter-nos enlaçados
Numa união perfeita, tudo junto,
Nossos corpos e almas amparados,
Jovens e crianças num conjunto

Harmônico de amores e... alegria!
Jamais antes desfrutara desmedida
Sem pensar no quanto duraria!

Mas, ai! se assim sonhei, irrefletida,
É porque esqueço desta vida
Como é frágil o fio com que se fia...




Cena XXVIII


Soneto do Paraíso perdido


Dia alegre, alvissareiro, sensual,
Noite auspiciosa com Mayra,
Rôdo deu um pulo até Guayra
Mas promete voltar pro ritual

Que faremos, por certo, no pomar
Que contém nossas três letras gravadas
(o nome inteiro de Mayra eu quis gravar),
Nossas almas para sempre entrelaçadas.

Como prelúdio de noites gloriosas
Eu me ponho no leito da aluninha
Pra narrar-lhe fábulas e glosas

Da precoce saga dos amantes
Que expulsos, Rôdo e eu, ainda infantes
Vimos a Ira no Pomar, a nossa Vinha!*




Cena XXIX


Soneto da Lareira



Noites frias, madrugadas de geadas,
Nosso belo pomar já desgalhado,
Pobre jardim de flores congeladas
Triste buquê de branco só orlado.

Encolhidas sob os palas no salão,
Tirita minha Mayra no seu poncho;
Na lareira crepita um tronco troncho,
Haja vinho, conhaque e chimarrão.

E abraço meus anjinhos, junto assim,
Para aquecê-los, ou melhor, eles a mim,
Que estão cheios de vigor e alegria.

Então Mayra introduz-se sob o pala
Colando-se ao meu corpo que se cala,
Meu seio acalentando comovia.




Cena XXX


Soneto do íncubo


Esta noite dormiremos abraçadas
Esperando o irmão que chegará.
Sobre duas que ressonam enroscadas
Antevemos que um terceiro deitará.

Então, com prelúdio começamos
Com um beijo, uma lambida e um gemido,
Vou engolir meu anjinho pervertido,
Se o varão não chega nos bastamos.

Mas eis que a porta range na penumbra
E silenciosa como musgo sobre a tundra
A silhueta do íncubo penetra

E numa dança harmônica complexa
Pernas, vulvas, seios, arco e flecha,
Enquanto um doce incesto ele perpetra....




Cena XXXI



Soneto do Dioniso "clown"



Ó noite de delírios imortais!
Inesquecível noite de prazeres,
Penetrações vibrantes, desiguais,
Meus dedos digitando seus lazeres!

Poesia dos meus lábios, dos meus dedos,
Dos meus seios titilados simultâneos,
Ainda posso ver os instantâneos
De memória dos lances tão sem medos:

Línguas penetrando atrás, na frente,
Cada um buscando o seu fetiche,
Um “sessenta e nove” diferente

Agora transformado em “sanduíche”...
Dionísio, clown, padeiro e histrião
Gargalhando, enquanto amassa o nosso pão!




Cena XXXII


Soneto do Hermafrodita


Dias gélidos, mas doces calmarias...
Que não sopre, ó Negrinho*, o minuano
Pois que o vento sul das pradarias
Traz consigo a dor e o desengano!

E temo que Mayra, apaixonada,
Esteja por meu Rôdo fascinada.
Pesa mais a viril força de um falo:
Onde ele fala é justo onde me calo.

Ah! Eu sei que vou perder-te
Mayra, pois não és senão Lolita*
E sei que isso mais vai envolver-te.

Sim, pois complementaridade
É de uma outra cor, outra saudade:
O ser que fomos, o remoto Hermafrodita!*


Cena XXXIII


Soneto do Odisseu



O sol de inverno banha a pradaria.
Insetos, borboletas, passarinhos
Devolvem aos raios seus carinhos
Como fosse primavera, em cantoria.

Passeio com Mayra e Patrícia
Seguidas pelo mais lindo cortejo:
Três guris, em risos sem malícia,
De puro prazer, é o que vejo.

E penso que estes dias aprazíveis
Serão na minha memória intangíveis,
Co’a nota mesma de secreto drama

Pois sei que vou perder-te, ó amada,
Que estás por Odisseu* inebriada,
Enquanto já se tece nova trama!*




Cena XXXIV


Da despedida de Rôdo


Manhã de despedida, Rôdo parte,
No quarto Mayra chora e chora.
Para ela o triângulo vigora,
Como pode partir a melhor parte?

E vejo-me num vago ciúme vão
Ao ver rolar as lágrimas de fêmea
Que pensa em termos de "alma gêmea"
A inusitada e deliciosa intrusão.

E percebo que por horas ou por dias
Minha pequena ninfa desolada
Não deixará por mim nem ser tocada.

Mordo os lábios, ciumenta como um gay,
Pensando que a mim mesma sabotei
Conspirando contra as minhas alegrias...




Cena XXXV


Da reconciliação


Esta manhã Mayra a mim veio
E se enroscou beijando aqui e lá,
Colou a sua boca no meu seio
E fingiu mamar como um piá.

E logo rolamos em gritinhos,
Fazendo cócegas até nos pentelhinhos,
Loucas pra de novo nos tocarmos
E ávidas os bálsamos sugarmos.

Dedos, bocas, línguas adentrando
Nossos lábios de baixo tão rosados,
Uma sobre a outra derramando

Claros fluidos, perfumes despertados
Orgasmos barulhentos, estertores...
Querendo dar e dar, sem mais rancores!



Cena XXXVI


Soneto do Minuano


Noite de estrelas frias, congeladas,
Vagueia o Cruzeiro em Branca Via*,
Preciso levantar e andar com as fadas:
Os vagalumes, como na infância os via.

E saio com Mayra a vagar
Por entre as touceiras prateadas
Pela noite de gélido luar
Como duas sonâmbulas sonhadas.

Então, subitamente um arrepio
Levanta a legião de folhas mortas,
Desata o Minuano como um rio!

E correndo para dentro, assustadas,
Brancas, tiritando, enregeladas,
Enquanto o velho Mino* bate as portas!




CENA XXXVII


Soneto das horas


Outrora tanto estive neste leito
Cercada pelas flores ideais
De outros amores no meu peito,
Outros sonhos, no fundo sempre iguais.

Sou infanta, princesa do impossível
Embora pareça tão devassa,
Mas sei que o coração é traduzível
Pela teia dos versos que perpassa.

E tudo ouso, perpetro e me permito
Seguindo os impulsos desta Alma,
Recriando cada ato em puro Mito.

Poeta, estou em meio aos imortais,
O único pensar que então me acalma,
Ao pulsar das horas tão fatais!




Cena XXXVIII


Soneto do desespero da Alma


AH! Mayra,não sabes o que sofro
Em momento muito íntimo, fugaz,
Em que a consciência como um sopro
Sussurra: "Alma, um dia morrerás!"

Ou então, essa voz cruel e fria
Murmura, no mesmo tom mordaz:
"Alma, tudo passa, tua alegria
No próximo inverno não verás."

"Serás velha um dia, perderás
Teus sonhos, teu tesão e tua certeza,
Tua beleza volátil como um gás."

E eu me reteso como um louco violino,
O meu corpo como um arco, toda tesa,
E mordo minhas mãos, como Ugolino!*




Cena XXXIX


Soneto da burra loura


És jovem, Mayra, mas surpreendes
Por um poder de compreender e assimilar;
Se pudeste me amar é porque entendes
Minha alma profunda em seu pensar.

Ah! Quisera às vezes ser a burra loura
E meus longos cabelos agitar
"Para pegar no tranco" e desatar
Um pensamento raso ou a vassoura!

Mas quando me vês séria e pensativa
É quando mais, eu vejo, estás "a fim"
E sei que não me achas cansativa

Pois embora uma "ninfeta"(como digo)
Tu deixaste tua mãe e teu amigo
Que me chamavam "louca do Jardim"!



Cena XL


Soneto do telefonema



-Mayra, é tua mãe, e prepotente
Ao telefone não quis nem falar comigo.
Diz que virá buscar-te incontinente
E que trará como escolta o teu amigo.

Ah! Já sabe até o endereço,
O mapa da estância ela encontrou...
Chegou a hora de pagarmos algum preço
E temo que será de muita dor!

Agora sei que vieste fugitiva
(era bom se fosse fácil assim!)
Mas, ah! Não deixarei levar, passiva,

A luz do meu amor, minha alegria,
Não deixarei que levem minha guria,
Não sabem que já és parte de mim!



Cena XLI


Soneto dos lírios



Ah! Amor, amanheceu hoje quentinho,
Olha na janela: um passarinho!
Ponhamo-nos então em longa saia,
Mandarei trazer a égua baia.

Montaremos assim, como as avós,
Não direi de lado*, isso é demais,
Tu na frente, eu me escancho logo atrás
Para ouvires, sussurrando, a minha voz.

E galoparemos loucas neste pampa
Zunindo como vento nas coxilhas!
Quero correr, quero voar, subir a rampa

Dos meus sonhos, sim, dos meus delírios!
Cavalguemos em pelo, em vez de cilhas
Dois vestidos brancos como lírios!



Cena XLII


EPÍLOGO


Singrando a manhã e a tarde fria,
Debaixo do Cruzeiro e do luar
Persiste o casarão em navegar
No imenso mar da pradaria.

Dorme a Vinha e o vinho nos barris...
Ah! Meu pomar querido, como hibernas
Em torno à macieira dos guris
Que cercando vão com suas lanternas!

Mayra e eu, abraçadas, sem pudores
Diante da ARA* nos postamos para orar
Pelo nosso amor, pelos amores,

Pela criatura amante e sua amada,
Almas puras pelo pampa e pelo ar
Numa imensa farândola* dourada!


FIM

(Cortina)


Fim dos Sonetos à Mayra, drama lírico em 42 cenas(sonetos) e Três Atos
de ALMA WELT (1972-2007)


Notas da editora

*..."complacente"- Alma alude ao fato de que Mayra permanecia "virgem" por ter "hímem complacente".

*...a Ira no Pomar, a nossa Vinha!- Alusão ao título bíblico do famoso romance de John Steinbeck, "Vinhas da Ira", já que também temos um vinhedo em nossa estância.

*...íncubo
- Demônio de natureza masculina, na mitologia cristã, qua assola os sonhos das mulheres durante a noite. Os de natureza feminina, que invadem os sonhos dos homens, chamam-se "súcubos".

* Velho Mino - era como Alma se referia desde a infância ao vento minuano.

*Negrinho- alusão ao Negrinho do Pastoreio, nume do Pampa, de quem Alma se dizia "devota".

* Lolita- Alusão à famosa ninfeta do romance de Wladimir Nabocov.

*Ugolino- O célebre personagem (histórico) da Divina Comédia, de Dante Alighieri, que tendo supostamente traído seu mentor, o arcebisbo Rogério, foi por ele encerrado numa torre para morrer de fome com seus filhos e netos. Iconograficamente é sempre representado como um velho que rói as próprias mãos (de fome ou de remorso) como na famosa escultura de Jean-Baptiste Carpeaux (séc. XIX) a que Alma já se referiu na sua novela Marcello, publicada no blog Novelas da Alma.

*... teu amigo- é como Alma sempre designava um namorado que Mayra tivera, e que a mãe desta ainda considerava seu noivo.


... *de lado - Alma se refere à maneira antiga das damas aristocráticas montarem de lado, com seus longos vestidos, em selas especiais, costume extinto nas estâncias do sul no começo do século passado

ARA- esta palavra que quer dizer "altar", aqui na verdade é a sigla(como muitos leitores já sabem) produzida pela incisão a canivete das iniciais de Alma, Rôdo e Aline, gravadas no meio de um ingênuo coração, pela poetisa em sua infância, no tronco da macieira sagrada do seu destino, no pomar da estância. Alma num dos sonetos desta série se refere a introdução por ela de um M e um Y na sigla , produzindo o nome de Mayra.

* farândola
- nome de uma dança da Idade Média e Renascença , que se fazia como um cordão puxado, de homens mulheres e até crianças, num rítimo acelerado e alegre, numa grande confraternização ao final das festas comunitárias. No Pampa ainda temos uma reminiscência dessa dança no cordão feito durante uma quadrilha em bailes de galpão.
Se os leitores quiserem ver um belíssimo exemplo de farandola, sugiro que aluguem o DVD do exelente filme de Kenneth Brannagah , sobre a peça de Shakespeare, Much Ado About Nothing ("Muito barulho por nada") em que o diretor termina a estória com uma emocionante farândola de todos os personagens ao som da linda e alegre canção "Sigh No More, My Ladies..." versos do próprio Shakespeare.(Ou simplesmente vejam a cena final do filme no You Tube:

http://www.youtube.com/watch?v=AzNQTJgRioM

(Lucia Welt)






Apêndice:
Acabo de encontrar, solto, este soneto inédito, manuscrito, na montanha de papéis da arca da Alma, e que nitidamente devia pertencer aos Sonetos à Mayra, mas que, por alguma razão, Alma descartou da obra final. Por curiosidade o publico agora aqui:



Soneto da serpente (de Alma Welt)

Ah! Mayra, mudaste de repente
Pois conheceste o homem e sua serpente
Não te aninhas mais a toda hora
No meu seio, guria, como outrora.

Estás espevitada, só rondando
Os passos do meu Rôdo, o belo mano;
Viraste mulherzinha, e ele zombando
Te manda pra mãezinha, ledo engano.

Mas Rôdo é bom e meigo, nada frio,
Logo estará nos abraçando, como um trio,
Está só fazendo o gauchão, eu o conheço,

Eu sei, e sonhando participo
Do ménage que na mente eu antecipo,
A teia que em tear eu tanto teço.